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lundi, 21 mai 2007

Causalidade, Necessidade e Cultura

Causalidade, Necessidade e Cultura


"Tudo o que existe no Universo é fruto do "acaso" e da "necessidade"
Demócrito de Abdera (460-370 EP)

O desenvolvimento cultural das comunidades humanas é consequência da capacidade intelectual do Homem, da manifestação livre do seu saber e do seu conhecimento, desenvolvimento esse permanentemente contrariado por principios dogmáticos estruturados como doutrinas, religiosas ou políticas, por teorias fundamentalistas de grupos laicos e sacerdotais interessados na manutenção de um "status-quo" capaz de manter os privilégios de que disfrutam, encerrando o desenvolvimento cultural e pretendendo transforma-lo em pseudo-dialécticas que, no abandono consciente das suas estruturas tradicionais e fundacionais, conduz inapelavelmente à sua regressão.
A falácia do igualitarismo, da divindade soterológica ou da finalidade hedonista da existência, conduz ao bloqueamento cultural e, consequentemente, ao desmoronar dos valores éticos que alicerçam a comunidade afectada que, gradualmente, vai inflectindo no sentido da superstição e da existência segundo um modelo acultural que lhe garante a sobrevivência.

Pela sua própria idiossincracia, o efeito dogmático bloqueia todo e qualquer diálogo com a expressão cultural vivente no seio das comunidades, e que formata o seu processo intelectual de compreender os laços que a constituem e o meio em que evolui.
A esse bloqueio, os gregos denominavam "aporia" (1), ou seja, o que consideravam não ter solução, ou o que criava "perplexidade", "embaraço" ou "incerteza", e quando aplicado a um debate, traduzia o reconhecimento por parte de todos os interlocutores da impossibilidade de definir uma noção, a "inexistencia de ligação entre argumentos", um "impasse de raciocinio".
Mais particularmente, Aristóteles designava como "aporia" um conjunto de afirmações separadamente plausíveis, mas falsas se consideradas em conjunto, considerando que a reconciliação de tais proposições, perante soluções alternativas, eram um trabalho de máxima importância para os filósofos.

Perante semelhante enfrentamento entre o dogma paralisante, e portanto culturalmente regressivo, e a estrutura cultural "tradicional" (2), surge a questão sobre se existe um objectivo na existência do ser-humano, algum processo "teleológico" (3) da vida, e se quando consideramos estar, "a priori", perante uma "aporia", na realidade estamos na presença de um embaraço, de um desafio à nossa capacidade de "animal racional" ("zoon logikon") que nos impõe atravessar o "Rubicão", e instalalarmo-nos num processo de desenvolvimento intelectual, ou ficar passivos na crença em mistificações simplistas de divindades etéreas criadas à imagem da nossa ignorância e da nossa curiosidade.

A "teleologia" pressupõe uma espontaneidade no ser vivo, uma energia vital que poderiamos aproximar da "entelequia" (4), termo com que Aristóteles pretendeu designar a "energia da vida", "algo que tende por si mesmo a atingir o seu próprio fim".
Com efeito, a evolução biológica aparece como uma fase de um processo evolutivo composto de três fases diferenciadas, embora interligadas num mesmo processo geral, que para uns se subdivide em "fase inorgânica ou pré-biológica", "orgânica ou biológica" e "humana ou pós-biológica", e para outros, em "protoplasma", "célula" e "animal", como niveis em que se manifestam os graus de integração e organisação dos seres vivos.

Se há ou não um "propósito" nesta evolução, é assunto discutível, embora presentemente não se admita uma teleología no conjunto do processo evolutivo, mas sim processos parciais teleonómicos, isto é, processos que possuem uma "direcção própria".

Os "epistemólogos" (5) ocuparam-se da explicação dos processos evolutivos, concretamente na evolução biológica e concluiram que a explicação evolutiva não é, nem pode ser, uma explicação de natureza dedutiva, mas que pode haver explicações dos processos evolutivos através de leis demonstrativas de como, de um grupo de condições iniciais, se desenvolve (ou "se desenvolveu") um determinado processo, que produz certas outras condições, regidas por leis próprias.
(consulte-se Ernest Nagel, filósofo, epistemólogo - 1901/1985).

Os sistemas vivos seriam teleológicos, relacionando-se com o "cenário" em que vivem, através de um sistema de informação que o naturalista alemão Jakob von Uexkull denominou de "Umwelt", que significa algo como "o-mundo-que-nos-rodeia".
A teleologia seria pois, uma perfeita afirmação da entropia, ou seja, um encaminhamento permanente da ordem à desordem para construir outra ordem.
Nas transformações de energia, "entropia" é a tendência para um estado de desordem molecular no qual a energia deixa de ser utilizável como trabalho.
O segundo principio da termodinâmica, estabelecido por Carnot e Clausius, enuncia esta tendência à degradação da energia, enquanto o primeiro principio afirma a conservação da quantidade, mas através da transformação da qualidade, que se degrada dispersando-se em calor não utilizável.
Este conceito estendido da física, à biologia, à economia e à sociología, tomou nesta última o sentido geral de tendência à desorganisação e à desestruturação.

Aristóteles, na "Ética a Nicómaco", desenvolve o principio da causalidade para evidenciar uma finalidade subjacente à finalidade das coisas.
Esta finalidade contida no "Ser" e que o leva a "devir o que ele é", é denominada "telos" por Aristóteles, e daí provém a "teleologia", um conceito filosófico que diz haver um principio director, uma finalidade que actua na natureza e que a faz realizar o que ela é.
Aristóteles faz notar a extraordinária universalidade deste principio, do qual nada parece afastar-se, como se uma "mão invisível" orientasse o processo. Tenhamos presente que jamais o "Estagirita" atribuiu a essa "mão" uma qualquer noção de divindade !

Na actualidade, uma aproximação sistémica da teleologia e da teleonomia apresenta-as como noções que se relacionam com o objectivo a atingir, com a finalidade, que pode ser declarada (como intenção expressa) ou interpretada a partir da observação dos comportamentos que parece tenderem para um objectivo atribuido pelo observador.

Compreendamos que se algum processo teleonómico nos coloca perante a decisão de sermos servos hedonistas existindo em sociedades controladas por oligarquias anónimas, ou homens livres vivendo em comunidades por nós dirigidas, a opção é nossa, reside na nossa capacidade de ser rebelde, de construir a alternativa cultural que nos permita continuar a viver como rebeldes, e não como servos de oligarquias ou de divindades.

Biologicamente, o "acaso", o fortuito, cria situações que podem ser inócuas e desprezadas, ou aproveitáveis e que a "necessidade" impõe ; sociologicamente, compete-nos a nós determinar a "necessidade".
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(1) Do gr. "a", que priva ou nega, e "poros", passagem, solução.
Certos diálogos de Platon chocam com a "aporia", como no "Eutifron" ("Euthyphron") quando procura uma definição para o que é piedade.
O termo surge mais tarde na Europa, e.g., na "Grammaire genérale" de N. Beauzée, em 1767, para descrever uma figura de retórica relacionada com a "dúvida intransponível" e, no século XIX, continua a ser definido como processo de retórica pelo dicionário Littré, e no século XX, o termo "aporia" é bastante utilizado no discurso filosófico para significar os problemas insolúveis a que conduzem os raciocinios de certos filósofos.
O denominado "teatro do absurdo" coloca em cena situações que poderiam ser consideradas de "aporia", como no caso de Samuel Beckett (1906-1989) cujo personagem, no seu isolamento, acaba por se isolar de si mesmo e dos outros e não vê o seu destino que no silêncio ou na morte (in "En attendant Godot" - 1953), enquanto o dicionário Robert, a partir de 1970, regista o vocábulo como : "(…) dificuldade de ordem racional aparentemente sem solução".

(2) Tradição não é sinónimo de estagnação ou de saudosismo, mas sim de evolução de estruturas fundacionais.
Entendemos por "saudosismo" um patológico desejo do passado, diferentemente do sentimento de "saudade", absolutamente respeitável, pois só sente "saudade" quem tem memória.

(3) Mencionamos "processo teleológico da vida" referenciando "teleológico" como adjectivo que provém de "teleologia" (do gr. "télos", finalidade + "logos", conhecimento), vocábulo proposto por Ernest Mayr (1905-2005) em 1974, significando "doutrina que considera terem todos os seres uma finalidade" e concebendo o mundo como um sistema de relações entre meios e fins, opondo-se a uma visão mecanicista.

(4) Vocábulo criado por Aristóteles para designar a tendência natural de qualquer "sistema" a procurar realizar-se plenamente, a atingir o limite das suas potencialidades.
"Entelequia", do antigo lat. "entelechia", proveniente do gr. "entelecheia" ("en", em + "telos" finalidade e "echein", ter), "ter ou ser uma finalidade". Para alguns, está próximo do termo gr. "energeia" ("energia"). "Força vital". "Vitalismo" (Ortega y Gasset).

(5) Do gr. "épistémê", conhecimento, e "logos", razão, discurso.

06:10 Publié dans Philosophie | Lien permanent | Commentaires (0) | |  del.icio.us | | Digg! Digg |  Facebook

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