samedi, 01 décembre 2007
G. Locchi : A essência do fascismo
A essência do fascismo (excertos)
«O recente reflorescer dos estudos históricos sobre o “fenómeno fascista” não comportou até agora nenhum progresso digno de registo e inclusivamente têm contribuído para obscurecer o problema, comprometendo o que de válido, e era muito, se havia conseguido nos finais dos anos 50. A razão não é difícil de encontrar: não se trata de um interesse histórico mas de um interesse político e partidarista o que motiva a maior parte dos estudiosos, intérpretes em Itália das angústias e preocupações de um sistema em crise. A paixão política e as preocupações de ordem moral têm toldado (quase sempre) nos estudiosos do sistema fascista o espírito de observação, paralisando as suas faculdades de dedução tornando o objecto de estudo mais confuso que esclarecido.
Agora, também a História, na medida em que deseje ser ciência, deve procurar proceder “sine ira et studio” como pretendia Spinoza, admitir que só pode ser ciência se for “wertfrei”, isto é, isenta de preconceitos de valor. O “fenómeno fascista” faz parte do passado e, como tal, pode ser objecto de estudos históricos, o mesmo é dizer: desapaixonados. Sem dúvida o “fenómeno fascista” prolonga-se de alguma maneira no presente (como ocorre com o resto do passado histórico) e enquanto tal suscita uma tomada de posição política, mas essa atitude deve ter lugar fora do estudo, já que de outra maneira se arrisca a basear-se na ignorância existente, mais ou menos ampla, sobre o “objecto” real.
A verdade é que hoje, trinta e cinco anos depois da queda dos regimes fascistas, por factores externos, o “fenómeno fascista” está presente sobretudo como um fantasma dos seus adversários, e isto a tal ponto que o estudioso actual está, mais que nunca, exposto ao perigo de dirigir a sua atenção sobre o “objecto” puramente fantasmagórico.
No período pré-bélico, bélico e nos pós guerra imediato, a presença do “fenómeno fascista” situava-se plenamente na realidade objectiva e os investigadores tinham menos possibilidade de incorrer em falta na hora de determinar a natureza do objecto sujeito a estudo. Ainda quando sucedia deformarem as suas conclusões quase sempre se tinha a impressão que, na realidade, haviam reconhecido, mais ou menos, a verdade, inclusive se às vezes se tivessem esforçado por distorcer ou até ocultá-la, por medo (político) de que a verdade pudesse fascinar mais do que provocar repúdio.»
(…)
«Nas últimas três décadas sucedeu que para a falsificação do discurso sobre a natureza do “fenómeno fascista” têm contribuído fortemente inclusive aqueles que, por tradição ou por instinto, haviam estado ainda dispostos a reconhecer-se como fascistas. Isto é perfeitamente compreensível, por outro lado, já que a partir de 1945 se o fascismo tenta desenvolver uma acção política vê-se constrangido a realizá-la debaixo de uma falsa bandeira e deve, ao menos publicamente, renegar aspectos fundamentais do discurso fascista, ao menos verbalmente, sacrificando-os ante os princípios de uma ideologia democrática, como de maneira idêntica, debaixo do império romano, os cristãos deviam oferecer sacrifícios ao César enquanto divindade. Inevitavelmente, esta atitude forçada do fascista-político teve o seu reflexo sobre a actividade do estudioso do fascismo que analisa a sua história, sempre por causa da deplorável incapacidade em distinguir entre estudo histórico e actividade política. Adicionalmente, a catástrofe da “guerra perdida” acentuou a polémica entre as distintas expressões nacionais do fascismo e – no interior dos diferentes fascismos nacionais – entre as várias correntes fascistas, cada uma delas reclamando-se como manifestação de um fascismo “bom”, prudentemente rebaptizado com outro nome e, à vez, atirando sobre outras a responsabilidade de um “mal”, geralmente identificado com formas do “fenómeno fascista” que haviam detido o poder e atraído sobre si a condenação universal…
A actual proliferação de obras que apenas aumentam a confusão e multiplicam a ignorância a propósito do “fenómeno fascista” torna, mais que nunca, necessário voltar a remeter-se àqueles estudos que foram realmente sérios, já que souberam ver e discernir o seu objecto, inclusive se, quem sabe, o fizeram de uma perspectiva que hoje consideramos desactualizada. No que concerne a obras válidas devidas a estudiosos que politicamente se situam no campo adversário, é preciso assinalar que são devidas geralmente a autores israelitas, muito interessados em compreender realmente o fascismo, para melhor combatê-lo. Citaremos como exemplos típicos o ensaio «Dos Românticos a Hitler» de Paul Viereck; o estudo fundamental de Georgy Lukacs «A Destruição da Razão» do qual existe um compendio intitulado «De Nietzsche a Hitler»; e também – sobretudo porque acumula uma rica documentação paralela – o «Hitler e Nietzsche» de Sandvoss. Lukacs e Viereck tiveram o grande mérito de ressaltar a origem primária, a «matriz» do “fenómeno fascista”, reencontrada em todo um importante filão da cultura alemã e europeia, se bem que, depois, obedecendo a evidentes fins propagandísticos, tenham introduzido no seu discurso o «leitmotiv» de uma espécie de ruptura qualitativa ente as origens culturais e filosóficas (das quais era difícil não reconhecer a importância e nobreza) e as manifestações políticas herdadas no século XX, caracterizada, segundo eles, pela falta de cultura, a barbárie intelectual e – em última analise – por uma vulgarização do pensamento dos «mestres», Friedrich Nietzsche e Richard Wagner em particular.
No pós-guerra está quase totalmente ausente uma reflexão histórica válida sobre o “fenómeno fascista” por força das coisas, isto é dizer, pela simples razão que já foi citada: quedou-se condenada à ilegalidade ou pelo menos à intolerância radical toda a manifestação de carácter genuinamente fascista. Mas já que a definição legal de fascismo apenas abarca, e mal, as formas particulares e conjunturais em que se encarnou entre 1922 e 1945 nos regimes onde teve o poder e ignora todas as outras manifestações (que existiram no mesmo marco cronológico mas que não ficaram comprometidas pelo exercício do poder) assim como – necessariamente – ignora todo o vasto campo cultural, filosófico, artístico que é a matriz do fascismo, criou-se uma certa margem de liberdade para aqueles autores que, embora só por razões tácticas, se reclamam seguidores das formas não incriminadas (por desconhecidas) do fascismo. Largamente determinadas por estas constrições externas, a obra destes autores, ainda que para leitores que se supõem à partida cúmplices, resulta dificilmente decifrável. Ainda mais ao restringirem a definição de fascismo falsificam o seu objecto arbitrariamente, reduzindo-o apenas a uma pequena parte do todo – incapaz de existir por si só – contribuindo para a confusão generalizada. É este o caso, em parte, dos trabalhos históricos de Julius Evola, quando se tomam como tal, já que na realidade os referidos trabalhos são fundamentalmente filosóficos ou políticos, expressão do ponto de vista de uma corrente singular, amplamente representada também entre os «volkische» da Alemanha austro-bávara com uma marcada tendência para o esoterismo e para reduzir a si mesma a definição do fascismo “válido”.»
(…)
«Entre os estudiosos que se reconheceram como fascistas ou pretensamente neutrais citaremos aqui, pela rara valia das suas teorias, sobretudo Adriano Romualdi, cuja obra é, sem embargo, fragmentária e incompleta, entre outras razões pela sua morte, ainda em plena juventude, mas que tem o mérito de ser quase a única em Itália a ter sabido abraçar a totalidade do objecto, havendo reconhecido perfeitamente a matriz do “fenómeno fascista” no discurso de Nietzsche e, por fim, de ter posto em relevo a lógica conclusão indo-europeia que, como veremos, é a típica “volta-às-origens-projecto-de-futuro” de todos os movimentos fascistas e ter compreendido assim que para o fascista a nação acaba por ser reencontrada, mais que no presente, num distante e mítico passado e perseguida depois no futuro, «Land der Kinder» (Nietzsche), terra dos filhos mais que terra dos pais (pátria, Vaterland).
Fundamental é também, mas de um ponto de vista totalmente distinto, a obra de Armin Möhler «Die Konservative Revolution in Deutschland, 1918-1933». Möhler centra a sua atenção sobre todas as formas não directamente comprometidas do fascismo alemão e põe rigorosamente entre parênteses o nacional-socialismo, limitando-se a dizer laconicamente que a Revolução Conservadora é para o nacional-socialismo aquilo que o trotskismo é para o leninismo. De facto, não faz senão pôr a «Weltbild» como manifesto comum a todos os movimentos fascistas (na acepção genérica do termo) que prosperavam na Alemanha, precisando admiravelmente como no seu seio se estruturavam toda uma série de «Leitbilder» que, ao serem acentuadas de uma maneira ou outra, tinham como consequência as diferentes formas ou correntes do fascismo alemão, isto é, da Revolução Conservadora, nacional-socialismo incluído (ainda que este se encontre explicitamente ausente no discurso de Möhler). «Weltbild» e «Leitbild» traduzem-se literalmente como «imagem do mundo» e «imagem guia» ou «imagem condutora»; mas na realidade convém falar, para uma melhor compreensão de «mito» e «mitificação».
Curiosamente a obra de Möhler encontrou um indispensável complemento na de um marxista francês que aplica os métodos da linguística estrutural à parisiense, Jean Pierre Faye, cujo documentadíssimo livro dedicado às linguagens totalitárias (o que para ele é equivalente a fascista) colmata as lacunas do livro de Möhler, inserindo o nacional-socialismo alemão e o fascismo italiano numa bem desenhada “topografia” da Revolução Conservadora e colocando o primeiro no “centro sintético” do campo conservador-revolucionário alemão. Faye, sem embargo, considera tão-somente o “discurso político” imediato dos movimentos fascistas de então, com as suas referências a problemas contingentes esquecendo a “visão do mundo” e portanto os “pontos de referência” intelectuais.
Somente aprofundando todos os estudos que temos citado (junto com outros do mesmo tipo) se pode chegar a alcançar uma real compreensão do “fenómeno fascista”. Não se compreende nada do fascismo se não se tem em conta, ou não se quer admitir, que o chamado “fenómeno fascista” não é outra coisa que a primeira manifestação política de um vasto fenómeno espiritual e cultural a que chamaremos «superhumanismo», cujas raízes estão na segunda metade do século XIX. Este vasto fenómeno configura-se como uma espécie de campo magnético em expansão, cujos pólos são Richard Wagner e Friedrich Nietzsche. A obra artística de Wagner e a obra poética/filosófica de Nietzsche exerceram uma enorme e profunda influência no ambiente cultural europeu de fim de século e na primeira metade do século XX, tanto no sentido negativo (causando repúdio) como no sentido positivo: inspirando seguidores (filosóficos e artísticos) e desencadeando acções (espirituais, religiosas e também políticas). A obra destes autores é, de facto, eminentemente agitadora; a sua importância está muitíssimo mais no “princípio” novo que introduzem a nível europeu que na sua própria expressão e nas primeiras aplicações que destes princípios se realizaram.»
(…)
«Por “princípio” entendo aqui o sentimento de si mesmo e do homem, que, quando se refere a si mesmo, se auto-afirma, é um “Verbo” (Logos); quando persegue um fim é “vontade” (pessoal e comunitária) e é também, imediatamente depois de sentimento, um sistema de valores.
O que através da obra de Wagner e Nietzsche entra em circulação e se difunde, com maior ou menor força, é, sobretudo, o “princípio” ainda que este seja imperfeitamente captado ou receba, por causa da sua novidade, interpretações e aplicações inapropriadas. Pelas vias mais estranhas, às vezes subterrâneas, este princípio foi transmitido e recebido e é só meio século depois do seu nascimento, quando começa a obter uma certa difusão social, quando começa a ser aceite e feito próprio por grupos sociais inteiros de homens que nele se reconhecem, às vezes sem saber inclusive quem pôs em circulação o novo “princípio”; assim se criaram os primeiros movimentos fascistas.
Entre “superhumanismo” e fascismo, mais que a relação eminentemente intelectual que para os marxistas existe entre teoria e prática, o que existe numa relação genética espiritual, uma adesão às vezes inconsciente do segundo ao “princípio superhumanista”, com as acções políticas que dele emanam. Quem sabe por isto se pôde dizer, ainda que a expressão não seja muito afortunada, que «o fascismo é acção à qual é imanente um pensamento», e se falou também da “mística fascista” e do carácter quase “religioso” do fascismo.
O princípio “superhumanista”, respeito do mundo que o circunda, torna-se o inimigo absoluto de um oposto “princípio igualitarista” que é o que caracteriza este mundo. Se os movimentos fascistas individualizaram o “inimigo” (espiritual antes que político) nas ideologias democráticas – liberalismo, parlamentarismo, socialismo, comunismo e anarquismo – é justamente porque, na perspectiva histórica instituída pelo “princípio superhumanista” estas ideologias configuram-se como outras tantas manifestações, aparecidas sucessivamente mas ainda todas presentes, do oposto princípio igualitarista; todas têm um mesmo fim com um grau diferente de consciência e todas elas causam a decadência espiritual e material da Europa, a “baixeza progressiva” do homem europeu, a desagregação das sociedades ocidentais.
Por outro lado, se podemos afirmar que todos os movimentos fascistas têm um determinante instinto “superhumanista” está também claro que tiveram um nível de consciência do mesmo variável; e é precisamente este distinto grau de consciência que se reflecte na gradual variedade dos movimentos fascistas e nas suas respectivas atitudes políticas. Não é de estranhar pois que se todos combatem as formas políticas do igualitarismo, às vezes não se definam contra as suas formas culturais ou se o fazem, fazem-no em menor grau e, depois, como sempre ocorre, entre o campo fascista e o igualitarista cria-se um campo intermédio, oscilante, com formas espúrias.»
PS: Note-se que sempre que aqui se fala de “superhumanismo” é para ser entendido no sentido “nietzschiano” do termo.
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